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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Desafiando o Rio-mar – Operação Tapajós - Berço da Humanidade I


Desafiando o Rio-mar – Operação Tapajós
Berço da Humanidade I

“(...) por uma grande lapa feita, e talhada por modo de uma grande Igreja, ou Templo, que bem mostra foi obra de arte, ou prodígio da natureza.”
(Padre João Daniel)

Minha permanência em Santarém, depois de aportar na Pérola do Tapajós, tinha por finalidade dar continuidade a uma série de pesquisas que me permitiriam tirar conclusões mais fiéis a respeito das narrativas de pesquisadores e escritores modernos e antigos. Eu concluíra a navegação, mas não as pesquisas referentes à 3ª Fase do Projeto. Uma de minhas maiores indagações se encontrava nas páginas da célebre obra “Tesouro Descoberto no Rio Amazonas”, do Padre João Daniel, escrito na prisão, entre 1757 e 1776. Daniel menciona pelo menos um local, na Bacia do Tapajós, que os nativos reverenciavam como o “Berço da Humanidade”. Como pesquisador, lancei-me de corpo e alma na tentativa de tentar averiguar “in loco” a existência do mesmo. Reproduzo, abaixo, dados do autor e seu intrigante relato para que o leitor compreenda meu interesse.

- João Daniel (1776)

João Daniel nasceu em Travassos, Província de Beira Alta, Portugal, em 24 de julho de 1722. No dia 17 de dezembro de 1739, ingressou na Companhia de Jesus e dois anos depois foi enviado para o Maranhão e Grão-Pará, onde completou sua formação no Colégio São Luís. Viveu dezesseis anos na fazenda Ibirajuba, considerada, na época, a melhor possessão dos jesuítas onde conviveu durante seis anos com nativos de diversas aldeias. Em 1757, o Marquês de Pombal determinou que todos os jesuítas fossem presos e deportados. O Padre João Daniel foi encarcerado no Forte Almeida, Portugal, de 1758 a 1762 e, depois, na Torre Julião, até o dia de seu falecimento em 19 de janeiro de 1776. Sua obra, escrita no período em que permaneceu cativo, revela com riqueza de detalhes incomparável três temas fundamentais: a terra, o homem e a cultura da Amazônia do século XVIII. Embora Padre Daniel faça dois relatos distintos a respeito de monumentos naturais na Bacia do Tapajós alguns autores advogam a possibilidade, ainda que remota, de que se trate do mesmo local já que os relatos poderiam se referir um à época das cheias e outro das vazantes. Digo remota porque na época das cheias as cavernas do Cupari ficam parcialmente submersas e, portanto, a descrição delas deveria ser diversa da apresentada ao Padre Daniel.

“Junto à catadupa do Rio Tapajós, acima da sua foz pouco mais de cinco dias de viagem, está uma fábrica, a que os portugueses chamam convento, por ter o feitio dele. Consiste este em um comprido corredor com seus cubículos por banda, e com suas janelas conventuais em cada ponta do corredor. É fábrica, segundo me parece das poucas notícias que dão os índios brutais em cujas terras está, de pedra e cal, e conforme a sua muita antiguidade mostra ser feito por mãos de bons mestres. É todo de abóbada, e muito proporcionado nas suas medidas, e não é feito, ou cavado em rochedo por modo de lapa, ou concavidade, como são os templos supra, mas obra levantada sobre a terra. Alguns duvidam se toda a fábrica consta de uma só pedra, porque não se lhe vêem as junturas: famoso calhau se assim é e, na verdade, só sendo um inteiro calhau parece podia durar tanto, pois segundo o ditame da razão se infere que ou é obra antes do universal dilúvio, ou ao menos dos primeiros povoadores da América, que por tão antigos ainda se não sabe decerto donde foram, e donde procedem. A tradição, ou fábula, que de pais a filhos corre nos índios, é que ali moraram, e viveram nossos primeiros pais, de quem todos descendem, brancos e índios; porém que os índios descendem dos que se serviam pela porta, que corresponde às suas aldeias, e que por isso saíram diferentes na cor aos brancos, que descendem dos que tinham saído pela porta correspondente à foz, ou boca do Rio; será talvez a principal, e ordinária serventia do palácio, e a outra uma como porta travessa: outros dizem que naquele convento moraram os primeiros povoadores da América, e que repartindo a seus filhos, e descendentes aquelas terras, eles bulharam (discutiram irracionalmente) entre si sobre quem havia de ficar senhor da casa, e que finalmente só se acomodaram desamparando a todos.

Eu não disputo agora sobre estas tradições, cuja ponderação deixo à discrição dos leitores, só digo que o palácio, ou convento bem merece veneração por velho e gozar dos privilégios dos mais antigos. Algum autor houve, que discorria ser a América o paraíso terreal, onde Deus pusera Adão, apontava para isso várias razões, fundadas já na sua grande fertilidade, e já nos seus grandes Rios; e outros que não aponto por me parecerem quiméricos, além de assentarem os maiores escriturários, que o lugar do paraíso era, e é na Ásia, encoberto, e oculto aos homens; e também pode ser na América do que prescindo; só digo que os que o põem na América têm neste “Convento” e tradição dos índios grande fundamento. A verdade é que os índios lhe têm tal respeito e veneração, que se não atrevem a morar nele, não obstante o viverem em suas fracas choupanas quanto basta a encobrir os raios do sol, e incomodidade da chuva; nem têm instrumentos para maiores fábricas, por não terem uso do ferro; e tendo ali casas feitas, e bem acomodadas, as deixam estar solitárias, servindo de covis aos bichos do mato, e de palácio aos grandes morcegos, e aves noturnas, que ali vivem, e moram muito contentes, e sossegadas, enquanto os tapuias não lhes dão caça com as suas flechas, para deles fazerem bons assados, e melhores bocados para os seus sair pela sua porta os índios, e por isso saíram tisnados (enegrecidos), e vermelhos: e quem fumo, e algumas vezes fogo por entre pedras; talvez que nele se tisnassem ao sair pela sua porta os índios, e por isso saíram tisnados, e vermelhos; e quem sabe se por causa deste fogo, e fumo, não habitam o convento? (...)

Mais curiosos foram os que mediram outra semelhante no Rio Tapajós, que com grande cabedal (caudal) deságua acima do Rio Coroa. Entre os mais Rios, e Ribeiras, que recolhe o Tapajós é um o Rio Cuparis, a pouca mais distância de três dias, e meio de viagem da banda de Leste no alegre sítio chamado Santa Cruz; é célebre este Rio, mais que pelas suas riquezas, de muito cravo, por uma grande lapa feita, e talhada por modo de uma grande Igreja, ou Templo, que bem mostra foi obra de arte, ou prodígio da natureza. É grande de cento e tantos palmos no comprimento; e todas as mais medidas de largura, e altura são proporcionadas segundo as regras da arte, como informou um missionário jesuíta, dos que missionavam no Rio Tapajós, que teve a curiosidade de lhe mandar tomar bem as medidas. Tem seu portal, corpo de Igreja, Capela-mor com seu arco; e de cada parte do arco uma grande pedra por modo de dois Altares colaterais, como hoje se costuma em muitas Igrejas; dentro do arco, e Capela-mor tem uma porta para um lado, para serventia da sacristia. O missionário que aí quiser fundar missão, já tem bom adjutório (auxílio) na Igreja, e não o desmerece o lugar, que é muito alegre. Bem pode ser que nos mais Rios e Distrito do Amazonas, e seus colaterais haja algumas outras Igrejas, ou Capelas; nestes três Rios Tapajós, Coroa e Xingu se descobriram estas, por serem mais frequentados”. (DANIEL)

- Jazidas de Gipsita no Rio Cupari

“A ocorrência de gipsita do rio Cupari foi reconhecida desde 1948 por Harald Sioli em trabalho versando sobre a topografia e limnologia do rio Cupari. A jazida está localizada no local denominado Manoel João, no baixo curso do rio Cupari, a 10 km de sua foz. (...) O mercado nacional de gipsita é abastecido, praticamente, na sua quase totalidade, pelas minas do Nordeste Brasileiro, o que reveste o jazimento do rio Cupari com características promissoras para o abastecimento dessa matéria-prima na região Amazônica, podendo eventualmente, atingir os centros consumidores de outras regiões do país, e quiçá, de mercados internacionais”. (CPRM)

O Cupari despertou, mais recentemente, a atenção da mídia, nos idos de 1948, quando foi relatada a existência de gipsita nas suas proximidades. O mineral de múltiplas aplicações é usado na produção do gesso, fertilizante, retardador de cimento, na fabricação cerâmica, de ácido sulfúrico, cervejas, moldes para fundição, vidros, esmaltes, desidratante, aglutinante, corretivo do solo, e aparelhos ortopédicos.

- Incursão ao Cupari (26 de janeiro de 2011)

Depois de Fordlândia meu interesse se concentrou na incursão ao Rio Cupari (Curupará ou Cuparis) e ao “Berço da Humanidade”. Partimos às onze horas para a foz do Cupari onde deveria estar nos aguardando um guia como fora anteriormente acordado, em Aveiro, com o Padre Sidney Augusto Canto, que nos acompanhava na Expedição. Aguardamos trinta minutos pelo guia que não apareceu e depois de colher informações desencontradas, de toda ordem, partimos, às 12h20, para a Comunidade de São Raimundo. O bravo Piquiatuba enfrentava a forte correnteza do Cupari, que beirava os 17 km/h, com muita valentia e mantinha uma velocidade em torno dos 12 km/h. Navegar em um Rio estreito permite que se observem as margens com mais detalhe. Apesar da beleza da vegetação da Floresta Nacional do Tapajós, cujo limite Norte era o próprio Rio, podia-se notar a ausência dos gigantes da floresta vítimas da ação antrópica. Depois de quatro horas de viagem, cinquenta quilômetros percorridos, aportamos na Comunidade de São Raimundo (3°56’48,2”S/55°19’24,5”O).

BM/Piquiatuba na Comunidade de São Raimundo

Para se ter uma idéia da sinuosidade do Cupari basta dizer que a foz ficava em linha reta a apenas vinte e cinco quilômetros de distância. Logo que chegamos o pessoal foi visitar a comunidade que estava bastante movimentada com o resultado da recente caçada: duas pacas, três cutias, um mutum e um tatu. O burlesco festim me fez lembrar uma recente refeição na qual “preservacionistas dialéticos” consumiram, sem qualquer constrangimento, dois pequenos jabutis, de menos de dez centímetros. Embora tenha sido iniciado na arte da caça ainda adolescente, aprendi, desde cedo, a preservar os filhotes e as fêmeas das diversas espécies. Nas praias sulinas retirávamos das redes, com cuidado, os siris que mais tarde serviriam de repasto, mas com a preocupação de devolver ao mar as fêmeas. Como Capitão, servindo em Aquidauana, MS, saíamos para caçar “porcos monteiros”, porcos domésticos criados a campo, e conscientemente evitávamos vitimar as matrizes. Fico impressionado como o discurso, de uns e outros, está longe da ação efetiva. A tolerância no consumo de filhotes de qualquer espécie não se coaduna, absolutamente, com qualquer um que pretenda se proclamar como defensor do meio-ambiente.

O Padre Sidney anunciou, novamente, que iria celebrar uma missa e incitei-o para que isso fosse feito com a presença da Comunidade local. A cerimônia simples foi realizada na escolinha e emocionou a todos nós. Quando jovens adultos mencionaram o fato de ainda não terem sido sequer batizados me aproximei do Padre e afirmei a ele que nada na vida acontecia em vão. O Sidney já havia feito menção de realizar uma missa a bordo em Fordlândia e que por fatores estranhos à nossa vontade não se concretizou. Certamente a cerimônia realizada em São Raimundo surtira um efeito muito maior do que a anteriormente programada. Voltamos para o barco tomando o cuidado de tirar os calçados embarrados e lavá-los nas águas do rio para não sujar o convés.

- Buscando o Berço da Humanidade (27 de janeiro de 2011)

Partimos, debaixo de chuva, às 6h50min, rumo às cabeceiras do Cupari. Improvisamos capas de chuva com sacos de lixo de cem litros tentando nos proteger da chuva fina e fria.

Passamos por uma novilha que lutava, com dificuldade, contra a correnteza forte. Soubemos, mais tarde, que ela fora “piedosamente salva” das águas pelos ribeirinhos que a carnearam sem compaixão. Aportamos nas imediações da casa do senhor Francisco Sales que nos serviria de guia, ele se esquecera de tirar a “malhadeira” e a hélice do 40hp enroscou nela. Nosso piloto, soldado Marçal, teve de lançar mão de um canivete para livrar a hélice, e ao recolher a rede verificamos que havia capturado um peixe cachorro de uns sessenta centímetros. Deixamos a rede e o peixe na embarcação do Sales que se aproximara rapidamente.

Sales em sua embarcação
À medida que subíamos o Cupari a vegetação se tornava mais densa e luxuriante. As gigantescas castanheiras e samaumeiras destacavam-se majestosamente sobre a copa das demais irmãs da floresta. No Solimões estas espécies dominavam a terra firme e agora eram senhoras absolutas da várzea.


  Cruzamos por um magnífico casal de araras azuis e uma infinidade de “ciganas” que se afastavam rapidamente à medida que nos aproximávamos.

Cigana ou Jacu-cigano (Opisthocomus hoazin): ave nativa do Norte da América do Sul. Habita regiões pantanosas e de várzea da bacia do Amazonas e Orinoco. A principal característica dos filhotes é um par de garras na ponta das asas, entre o primeiro e segundo dedos, que se perde quando atingem a maturidade. Os dedos são usados na proteção contra predadores, usando as garras para subir pelas árvores e fugir do ameaça.

Por volta das 7h50 chegamos à bifurcação com o Cuparizinho e continuamos até encontrar umas pedras que impediram nossa progressão por água por volta das 9h30. Descemos para esticar as pernas, analisar o terreno e fazer um pequeno lanche. Consultei o GPS e verifiquei que estávamos próximos à BR 230, ouvimos, ao longe, o som de carros na Transamazônica que estava no máximo a quatro quilômetros de distância. Ao regressarmos consultamos um morador que informou que as “cavernas” ficavam logo depois de nossa última parada e que o melhor acesso era por terra, via Transamazônica. Só então, o padre Sidney lembrou de que depois de Rurópolis, na BR 230, quilômetro 77, havia uma placa anunciando as tais cavernas que certamente eram nosso objetivo. Decidimos tentar, novamente, acessar o “Berço da humanidade” na próxima semana via terrestre.

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